domingo, 22 de fevereiro de 2009

A bilhteira mística

Maura tem 26 anos e gastou tempo demais pensando no que fazer da vida. Namorou e brigou. Queria sair da casa dos pais na Vila Clarice e não conseguiu. Começou muitos cursos e os trancou. Imaginou projetos que não foram adiante até que abandonou seus ideais na ilusão de náo sofrer. Dispersou o seu talento na indecisão.
De dúvida em dúvida, há dois anos acabou sendo aprovada em um concurso como funcionária do metrô, e se rendeu à necessidade de trabalhar. No primeiro dia, já a jogaram no guichê de vendas de bilhetes. Tremeu cada minuto das oito horas de expediente.
Voltou para casa tremendo. Quase não conseguiu dormir. “Não possso aguentar”, pensou enquanto virava de um lado a outro na cama. A resolução lhe deu tanto alívio que sonhou até que o despertador a chamasse às 6 da manhã. A mãe avisou-a de que tinha de pegar no serviço dali a uma hora. “Não vou”, anunciou, a cabeça debaixo do travesseiro. A mãe insistiu, trouxe-lhe café com pão. Meio a contragosto, prometeu tentar uma última vez. Chegou atrasada porque errou o endereço.
Aos poucos, acostumou-se à rotina – e ao salário baixo. Progrediu, não na carreira, mas por dentro. Seu sorriso pode ser visto no guichê ou diante das catracas na estação Barra Funda. Logo ela, que sempre se extraviou no tempo e no espaço, tomou gosto de orientar os passageiros. Voltou até ao curso de Inglês, para lidar com os estrangeiros, que lhe enchem de perguntas, e não só sobre itinerários: querem dicas de passeios e sugestões de roteiro cultural.
Mas o que deixou Maura surpresa foi o comportamento dos passageiros. Jamais pensou que as pessoas fossem tão carentes. Passou a notar que as filas diferenciam umas das outras, e cada uma das dezenas de pessoas que compõe as filas tem personalidade própria. Estranhou que em geral elas não compram bilhetes múltiplos. Querem uma passagem de cada vez, talvez para bater papo ou lhe dar bom-dia.
Fila é área de lazer, concluiu. Uns confessam segredos, outros querem opiniões sobre quaisquer assuntos, pechincham, levam presentes e santinhos. Há quem se aconselhe sobre teorias filosóficas. Um sujeito aparece por lá todos os dias. Espera horas só para, quando chega a sua vez, olhar no fundo do olho de Maura. Seria hipnotismo ou xaveco? Outra tarde uma senhora pediu que previsse o seu futuro, sem ligar para quem vinha atrás. Eu mesmo gosto de passar pela estação só para praticar meu inglês com ela. Maura acha graça:. “Neste trabalho, descobri que as pessoas se sentem seguras na fila. E que são muito mais perdidas do que eu!” Enfim, encontrou sua vocação: guru...


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Traiu ou não?

É a carioca mais falada em São Paulo. Não passa um dia sem que eu ouça o nome de Capitu. A moça alta, de rosto quadrado, nariz afilado, cabelos escuros e olhos grandes, claros e arrevezados parece viva, e não feita de letras. Ela se estabeleceu de tal modo na imaginação das pessoas, que chego a pensar que a personagem está ofuscando o seu criador, Machado de Assis. Agora a intrigante personagem dá nome a uma minissérie de televisão. Era o que faltava para virar celebridade..
Assim como o Sherlock Holmes enterrou seu criador, Conan Doyle, Capitu devora Machado - e no ano de celebração do centenário de sua morte. Capitolina pulsa e fascina. E Machado? Apesar de venerado, sua imagem pública não passa de uma escultura em bronze miúda na porta do prédio da Academia Brasileira de Letras. Agora ele a estátua é lembrada porque deu à luz a femme fatale brasileira.
Capitu surge no romance Dom Casmurro, publicado no fim de 1899. Quando eu tinha uns 20 anos, muito tempo atrás, achei um exemplar da segunda edição do livro. A Tipografia Garnier Irmãos imprimiu em Paris uma segunda tiragem em abril de 1900. Certamente Machado aprovou o volume – quem sabe tenha folheado este aqui... Talvez isso não signifique nada, mas me sinto privilegiado por ter conhecido Dom Casmurro nessa tiragem específica. Nas incontáveis situações que o li, sempre faço uma descoberta.E me inebrio ao folhear as páginas amarelecidas e rever as palavras em velha ortografia. Assim, Capitu é “Capitú”, com acento no final, o que faz com que pareça um nome ransgressivo, até ortograficamente. Porque melhor que ler Dom Casmurro, é deslê-lo. É voluptuoso perseguir os rastros do enredo a contrapelo, como um legista das artes.
Reler é sempre um desler. Dom Casmurro prova que a obra de arte muda com o tempo – e com os leitores. Em 110 anos, o livro foi submetido a tantos leitores, leituras e versões. O interesse vem de uma dúvida vulgar: teria Capitu traído Bentinho com o melhor amigo dele, Escobar, ou é uma vítima, a Desdêmona do Otelo Brasileiro?
É a conversa de bar mais antiga do mundo. Aposto que ela o traiu – se não por atos, pelo menos em palavras. No velório de Escobar, Bentinho nota que Capitu traga o cadáver com o olhar. São os “olhos de ressaca” que engolfam o amante, morto por afogamento. Os olhos carregam-no de volta ao mar, para espanto do narrador inseguro. Treme de pavor do desejo dela. Naquele instante, como em outros, o ciúme denso de Bentinho lança Capitu e Escobar ao adultério. O enredo é dele, afinal...

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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Nosso amigo, o rato

O longa-metragem de animação Ratatouille, da Disney-Pixar, que acaba de sair em DVD, narra a ascensão de um ratinho, Rémy, de fascinado por comidas sofisticadas até se tornar no grande chef de um restaurante de Paris. Quando a turma do cozinha descobre quem era o gênio do lugar, todo mundo sai em debandada. E aí assoma o momento mais épico do filme: uma horda de ratos, sob o comando de Rémy, toma posse da cozinha e passa a produzir os pratos mais refinados do mundo – chegando a conquistar cinco estrelas do crítico mais cricri do pedaço. Nos extras do DVD, há um curta-metragem, intitulado “Seu amigo rato”, em que Rémy defende a idéia de que homens e ratos deverão viver em harmonia daqui para frente, até porque ambas as espécies são as mais preparadas para sobreviver a uma provável hecatombe ecológica (Rémy não menciona as baratas nem os cupins).
A Disney vem se esforçando desde 1928, quando criou Mickey, para que simpatizemos com os roedores. Nas historinhas, pode ser. Mas, de fato, a humanidade continua a alimentar um horror ancestral aos ratinhos de todas espécies. Acabo de ler a notícia de que os ratos anteciparam os homens e já se globalizaram. Porque a globalização humana ainda é de capital, não de circulação de indivíduos – pois seguimos leis internacionais que limitam fenômenos como, por exemplo, uma invasão de chineses na Europa. Ou que os paulistanos mais afortunados se mudem em definitivo para Nova York. Os ratos não precisam de passaporte e estão em toda parte.
São Paulo não é exceção, pois experimenta uma praga endêmica de ratos de telhado. Eles vivem nos forros e sótãos das casas e nos terraços dos prédios mais altos. Surgem pelos vasos sanitários, calhas e bocas-de-lobo, devorando o que encontram pela frente. Numa noite dessas fui ver um concerto no Teatro Municipal. Juro: durante a pausa da orquestra ouvi ruídos de mastigação – e não pareciam aqueles chatos que abrem balas durante um "adagio" em pianíssimo. Eram ratinhos felizes! Com capacidade para mais de mil espectadores humanos, o Municipal deve abrigar uma população correspondente de melômanos roedores.
Desratizar SP seria uma campanha útil. Mas o prefeito e seus subs estão mais interessados em fazer a “higienização social”, caçando pobres em favelas históricas para liberar os terrenos para as grandes torres das incorporadoras. Os ratos assistem de camarote ao “espetáculo do crescimento” da indústria civil. Afinal, adoram mascar cimento e concreto armado. Apreciam também a dieta dos mais ricos. Estão prontos, como Rémy, para aperfeiçoar seu paladar nos novos “espaços gourmets” dos condomínios que sobem às nuvens. Pelo jeito, o cidadão vai ter de se unir a eles. Será a esperada ratização de uma longa amizade.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Árvores abatidas

andava distraidamente pela calçada do outro lado da rua da minha casa quando o funcionário da Prefeitura me alertou com um “psiu!” que eu corria risco de ser morto pela queda da árvore gigantesca que ele e sua equipe estavam derrubando naquele momento. Corri para a rua para me esquivar e só então notei que tombava uma frondosa sibipiruna de mais de 15 metros de altura, a mais bonita da praça Ada Rogatto. Eu sabia que a árvore tinha mais de 70 anos, e havia sido plantada pelos paisagistas ingleses que criaram o bairro do City Lapa, no fim dos anos 20. E me avisaram que outras quatro árvores da mesma espécie – raros exemplares da Mata Atlântica, a sibipiruna é uma das mais típicas da Paulicéia – teriam o mesmo destino, porque o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), da USP, analisou os troncos, detectou cupins e parasitas, e decidiu decretar o fim de todas elas. Eram tombadas pelo Patrimônio Histórico. Foram tombadas, pela Subprefeitura, sem dó.
A vontade foi de gritar, mandar parar tudo, reclamar com o Prefeito. Moradores pararam o carro e também protestaraam. Alguns chegaram a prometer uma ação imediata de protesto, abraçar as árvores. O vizinho comentou, entre resignado e arrasado: “Os técnicos disseram que árvore é como qualquer criatura, tem seu tempo de vida – e chegou a hora delas”.
Talvez tenha chegado mesmo, e talvez a gente seja excessivamente melodramático diante das plantas urbanas. Queremos abraçar criaturas despeparadas para a vida da cidade, sem nos dar conta do perigo que elas acarretam para os transeuntes, carros, fios, meios-fios e imóveis. Dizem ainda que as sibipirunas e outras árvores tradicionais morrem por causa da poluição, das pragas e dos maus-tratos do homem. São dinossauros, que precisam ser substituídos por tipos mais fortes, como ficus, palmeiras e... eucaliptos.
Ali perto de casa mesmo há uma horrenda Praça dos Eucaliptos lotada de árvores exóticas, fortonas, feias e plenamente adaptadas. São condenadas pelos ecologistas, mas a Prefeitura não irá tirá-las de lá. Afinal, só matam outras plantas que poderiam crescer rasteiras e sugam as águas subterrâneas. À sombra dos eucaliptos não cresce nada, só há terra estéril. Debaixo das sibipirunas e ipês, a grama é verde, as flores desabrocham, as crianças brincam...
Vou ter de lamentar calado, em nome da lógica urbana e do darwinismo arbóreo. Mas quero que saibam que não sou trouxa. Sei que o poder público não se preocupa em podar e tomar conta das árvores, o ônus recai sobre um ou outro morador idealista, que planta o que quer e como quer. Não há uma política de manutenção e de sustentabilidade das lindas árvores que ainda sobrevivem por aqui. Só reparam nelas quando estão tragicamente condenadas. O que sobrou da cobertura verde original de SP vai desaparecer sob a sanha dos cupins e das secretarias indiferentes. Será que ninguém se emociona mais? Na selação das espécies, que vença o mais fraco!

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Diabos do asfalto

Não há quem não se irrite com os motoboys. A começar por eles próprios, que parecem revoltados com a vida que levam – e descontam nos outros motoristas.. Em São Paulo, formam um exército de 200 mil integrantes. Uma estatística informa que morrem em média dois motoqueiros por dia na cidade. A cena é banal e terrível: o sujeito de capacete estatelado no chão, agonizando sob a indiferença rancorosa dos carros. É a guerra no asfalto.
Nem os pedestres escapam à sanha deles pela alta velocidade. Não raro, abatem um pedestre que tenta atravessar a rua. Semanas atrás quase fui colhido por um motoboy na avenida Europa, não longe do local onde o músico Marcelo Frommer foi fatalmente atropelado por um motoqueiro, no início do século.
Mas teimo, continuo a evitar o pânico social e sigo o caminho. Nos meus passeios pelas bordas das calçadas, observo o comportamento dos motoboys. Eles lembram seres sobre-humanos, anjos diabólicos do asfalto, enlouquecidos na “costura” que fazem entre os outros veículos, num zigue-zague dos infernos. Atravessam as avenidas congestionadas como se não possuíssem corpos, nem pilotassem máquinas. São o símbolo desta época em que o espaço està sendo abolido em nome do tempo. A aceleração das motos torna difuso o mundo em torno delas, borra os limites e converte o motoboy em uma espécie de mensageiro fantasma tão útil quanto perigoso.
Outro dia assisti em DVD ao documentário Motoboys – Vida Loca, de Caíto Ortiz. O filme confirmou minha convicção de que os motoboys vivem em conflito com os demais motoristas. Por força do trabalho insano e mal-remunerado, exibem um terrível mal-estar existencial. Daí para socar latarias e insultar cidadãos, é um simples cavalo-de-pau. Afinal, estão habituados a reinar nas ruas. O filme me revelou outro aspecto: o prazer com que eles trabalham e o poder que detêm. São necessários à economia. Se fizessem greve, paralisariam a cidade. Eles também antecipam o futuro: as motos deverão ganhar espaço no caos do tráfego e, um dia, poderão substituir os carros de passeio. Como diz o arquiteto Paulo Mendes da Rocha no filme, é irracional veículos que pesam toneladas transportarem motoristas que pesam de 60 a 80 quilos.
Pena os motoboys não terem consciência de seu potencial. Eles teriam tudo para se tornar heróis urbanos. Poderiam se engajar em trabalhos de socorro e projetos sociais. Como agentes de transformação, formariam o mais influente grupo profissional da cidade. Mas nada disso parece excitá-los. Eles só se unem quando se trata de formar gangues para defender o motoqueiro numa briga com outro motorista. Será que o cérebro deles esturricou sob os capacetes? Não notam que possuem superpoderes?!


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segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

HIstória e mancha

Desde 1970, já vi surgir e morrer cinco ou seis idéias de cidades na área que conheci como São Paulo. Ao passear pela cidade sinto como se caminhasse em múltiplos níveis. Essas camadas não são visíveis a olho nu, e sim pela memória. Estou agora no Centro. Faz algum tempo que não ando por aqui, então tudo sabe a novidade. O Centro dos anos 70 e 80 parece não existir mais.
Isso é só aparência, pois posso distinguir vestígios de projetos de cidade ainda mais remotos. Passo a andar no sentido anti-horário. No Bexiga a gente ainda pode ouvir o bate-estaca do punk e do pós-punk, em locais que sediaram casas noturnas “radicais”, como Madame Satã e Carbono 14, lembra? Consigo captar o nascimento do pólo pós-industrial dos serviços durante a década de 60 nas velhas galerias das ruas 24 de Março e Augusta. A metrópole da indústria dos anos 30 aos 50, quando São Paulo virou a “locomotiva do Brasil”, mora nos prédios Martinelli, Banespa e Copan. A Paulicéia Desvariada da Semana de Arte Moderna de 1922 encontra-se congelada na casa de Mário de Andrade, na rua Lopes Chaves, e no sobradinho kitsch de Oswald de Andrade na Consolação (que nos anos 80 sediou o Spazio Pirandello e agora está em ruínas). Eis a capital do café vibrando pelos viadutos do Chá e Santa Ifigênia e no famoso “triângulo” das ruas XV de Novembro, São Bento e Direita. As repúblicas de estudante do Largo de São Francisco e as mulheres de mantilha já não existem mais, mas a região da Igreja de São Francisco mantém o mapa dos antigos sobrados. e as vidas que os habitaram. Por fim, a origem: a São Paulo dos jesuítas e dos bandeirantes ainda pode ser espiada no Pátio do Colégio e no Mosteiro de São Bento.
Em alta velociade, viajei pelo ontem neste futuro.
Tudo aqui pode soar lugar-comum. Mesmo asssim, tudo possui um significado entranhado em cada rua e parede feito mancha profunda. História é a mancha que assombra os trajetos que a gente percorre. É desconcertante como os vetores da Geografia e da História se embaralham no vaivém pelo tempo. O espaço segue o mesmo, ou quase, em sua estrutura. As coisas e pessoas se modificam na superfície, mas os fundamentos da cidade continuam como nos séculos passados. Para usar uma distinção escolástica, a multidão de agora é a aparência a vagar pelos rasos da essência. E esta senhora silenciosa observa nossa agitação com um sorriso de quem adverte: “Caminhante, cuidado para não cair na ilusão do presente e assim perder a visibilidade dos desvãos do tempo!”

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Amigos ocultos

Fazer amigos que você não vê e nem verá é uma banalidade na internet. Mas a desmaterialização das relações humanas não é invenção deste tempo. Jà no meu, antes da popularizaçáo da “chateação” por laptops e celulares, o fenômeno já ocorria. E se deu comigo, por culpa do arcaico telefone fixo.
Aí por 1993 um poeta chamado Vicente Cechelero se apresentou a mim num telefonema. Ele me disse que havia obtido meu número de um amigo comum, o Fernando Dantas, colega da Letras-USP. Em um minuto, Vicente e eu viramos amigos de infância. E as ligações se tornaram freqüentes e longas. Noites adentro, contava a suas aventuras literárias. Quem disse que o “bit torrent” surgiu agora não conheceu o Vicente: ele era um jorro instantâneo e infinito de informação, sugestões de leitura e ditos impopulares.
Nas conversas, conheci sua personalidade: nasceu em Joinville, Santa Catarina. de onde “fugiu” em 1969, para se radicar na Paulicéia, pois brigara com meio mundinho literário sulista. Publicou dois livros. Era o modelo do bardo maldito, que eu não imaginava ainda existir. Declamava e cantava... música sertaneja. Entre as lições que me deixou, a mais comovente foi sobre o assunto. “Amo essas toadas”, disse. “Não as despreze. Porque ouvi-las é como andar por um prado cheio de flores silvestres. Há uma beleza singela nessa música.”
O poeta não tinha residência fixa. Havia anos morava no hotel Central, na avenida São João, e gostava de tomar ônibus e perambular pelas ruas, em busca de sebos, estupores e lendas. Certo dia jurou que queriam despejá-lo do hotel, não por falta de pagamento, mas porque ratos e cupins povoavam seu quarto, empoeirado e atulhado de alfarrábios, inclusive egípcios... Seria verdade?
Foi a sua derradeira ligação. Só me dei conta meses depois. As ocupações nos afastam dos amigos – mais ainda os virtuais. O que lhe teria acontecido? O século estava prestes a se encerrar quando o Fernando me informou, por telefone, que Vicente havia morrido, em Santa Catarina, de um ataque cardíaco, enquanto cantava e declamava à beira do leito de sua mãe enferma. Tinha 50 anos. “Mas o Vicente é estranho”, observou o Fernando. “Leu demais os contos fantásticos Borges. Talvez ele tenha, borgianamente, simulado a morte e se escondido por aí, para escrever em paz.” Assim perdi um amigo que nunca vi. E tenho dúvida se existiu de fato, ou teria sido um trote do Fernando. Jamais saberei, pois Fernando também se foi. Quero crer que ele, feito Vicente, ande incógnito por aí...